[Espaço]

Espaço

[Divisor]

O ônibus e a mobilidade cultural

Para a Zózima Trupe o ônibus representa um espaço constante de desafio e descobertas. Sua exploração nas pesquisas cênicas interessa em diversos sentidos. Pela estrutura física em si, precisamos pensar a ação cênica neste espaço restrito, a acústica das vozes e instrumentos e a atenção necessária no posicionamento dos atores e nas relações construídas com o público. 

A encenação em movimento traz questões que podem ser vistas tanto nas acepções simbólicas quanto práticas: o ator em equilíbrio e os cruzamentos entre tempo e espaço (reais e ficcionais), considerando interior e exterior do ônibus e tendo a paisagem da cidade como elemento constitutivo da obra. 

Além disso, é fundamental para nós a percepção do caráter coletivo e público do ônibus. A partir dela, compreendemos em pesquisa as possibilidades de intervir na cidade e suspender, inverter, romper com a lógica cotidiana no ato de ressignificar artisticamente esse meio de transporte.

Em um primeiro movimento, o teatro pode reinventar o espaço. Foi o que compreendemos em Cordel do amor sem fim. A arquitetura do ônibus se transforma com a presença dos elementos cênicos - cenário, iluminação, sonoplastia, figurino. Com eles, aquele ambiente deixa de ser apenas o de um meio de transporte, um não-lugar de trânsito. O ônibus é recriado e torna-se palco-passagem de uma realidade outra a ser vivenciada por artistas e público. Teatro e ônibus: théatron, lugar de onde se vê; omnibus, para todos.

Em um segundo movimento, o espaço pode reinventar o teatro. É, sem dúvidas, o caso de Os minutos que se vão com o tempo. A arquitetura do ônibus não é modificada, não há elementos cênicos. O espaço não existe para ser preenchido, pois não é vazio. Coexistimos e convivemos com ele e os tantos outros que compartilham-no conosco.

E seguimos em movimento. O ônibus, vivo, habitado pelas pessoas em locomoção, reinventa o espaço e o teatro. Os atores estão inseridos em uma realidade específica: não é o palco; não há luzes, cenários elaborados e sonoplastia. Há o público, os artistas e o ônibus. Há presença, afeto, poesia e o tempo presente. O ônibus é transporte-voo, espaço-pouso, teatro-ninho de encontros. O limiar entre o real e o imaginário se rompe na comunhão entre passageiros e atores.

Este movimento de pesquisa - basilar para a Zózima Trupe - é simultaneamente proposta artística e posicionamento político. Trabalhamos em busca de um teatro do encontro sem fronteiras; para tanto, focamos na ideia de uma possível mobilidade cultural. Em São Paulo, gasta-se em média duas horas e vinte e cinco minutos em deslocamentos diários, segundo pesquisa de 2019 da Rede Nossa São Paulo.

 

Quase metade (47%) dos habitantes dessa imensa cidade utilizam o ônibus como seu transporte diário - e quase um terço (30%) o faz mais de cinco dias na semana. Ao mesmo tempo que os passageiros-trabalhadores passam tantas horas no transporte público coletivo, o preço de sua tarifa faz com que 45% deixem de ir à atividades de lazer.

A partir de seu movimento de pesquisa do espaço, a Zózima Trupe propõe que se perceba o ônibus como mais do que apenas um meio de transporte, que uma máquina que percorre diariamente os mesmos itinerários levando passageiros amortizados pelo cotidiano.

É preciso transcender. Olhar com olhos instigados e ávidos por descobertas de novas paisagens, novos encontros. O ônibus expõe múltiplos sentidos de mobilidade. Como propõe o sociólogo John Urry, a mobilidade extrapola os deslocamentos geográficos. Permite circulações culturais e a revelação de diferentes formas de relacionamento com o espaço público. E, nesse espaço público sobre rodas, as interações sociais, os encontros e desencontros, os silêncios, as gritarias, as respirações compartilhadas a fórceps no aperto de fim de tarde, os olhares perdidos atravessando janelas, as conversas interrompidas pela abertura das portas revelam, pouco a pouco, microcosmos que compõem a vida social.

O ônibus, o espaço de atuação da Trupe, atravessa a cidade diariamente compondo e desconstruindo a sua paisagem. São esses muitos movimentos que nos interessam: o movimento do ônibus (físico e simbólico), o movimento das pessoas, construindo relações e compartilhando memórias. A arte, a cultura em ação no transporte público; a mobilidade cultural.

Para a Zózima, o sujeito e a cultura tornam-se fundamentais para a compreensão dos múltiplos sentidos dos processos de comunicação e sua ligação com o cotidiano, com a memória, com as diversas práticas sociais e com as possibilidades de tessituras artísticas.