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Memória e identidades

O público da Zózima Trupe é formado, principalmente, pelos sujeitos que utilizam o transporte coletivo. Como um coletivo de artistas que faz do ônibus espaço de atuação, cabe à nós a sensibilidade de buscar tais sujeitos, valorizar suas histórias e suas concepções de mundo. É necessário entender e conhecer essas pessoas, passageiros-trabalhadores, usuários do sistema público de transportes.

Não se trata de realizar uma abordagem antropológica ou sociológica - ainda que essas acepções nos interessem. Mas de efetivamente estar em contato; se fazer presente diante do outro para entender qual a relação que se estabelece entre esse passageiro-trabalhador e a pesquisa teatral realizada pela Trupe.

Pois nosso objetivo não é apenas o de encenar obras teatrais para eles. Nos interessa ouvir suas narrativas de vida, quem são e o que lembram. Quando a regra é esquecer, é preciso lembrar. Quando a regra é falar, é preciso ouvir. Foi com esta intenção que a Trupe passou a residir no Terminal Parque Dom Pedro II e Expresso Tiradentes. Foi com esta intenção que se realizou a Primeira Mostra de teatro no ônibus. É com essa intenção que seguimos na busca do teatro do encontro sem fronteiras.

Localizar o público como um princípio norteador dentro de nossos movimentos de pesquisa é compreender que nele encontramos a fundamentação para os processos de criação cênica da Zózima Trupe. Compartilhar momentos e parar para verdadeiramente ouvir histórias de vida é para nós estudo constante nessa pesquisa da arte que é a vida. Memórias, lembranças, relatos, saudades, festas e faltas: o que nos contam os passageiros-trabalhadores tornam-se alimento para a construção de dramaturgias, personagens, encenações do encontro.

No dia a dia, os integrantes da Trupe são também passageiros-trabalhadores em linhas de ônibus. Ao protagonizar as pesquisas de campo, assumem a função de ouvintes dos que compartilham aquele tempo-espaço com eles. É nesse contexto que se estabelece uma relação de reciprocidade. É nesse momento que passamos a vivenciar e a observar, juntos, o cotidiano de dentro e de fora do ônibus.

Nosso movimento de pesquisa em direção ao público é o que compreende o legado vivo, rico e diverso, da cultura popular. A paisagem urbana ganha cores pujantes na fala e no dizer das pessoas, na simplicidade de suas ações e crenças. A Zózima caminha com um olhar que sabe que reside nesses sujeitos a verdadeira riqueza cultural.

Em contato com o público em nossos processos criativos, não há uma oposição entre artista e passageiro. Nossa busca é pelo diálogo: duas pessoas em uma conversa espontânea; dois indivíduos se conhecendo, reconhecendo - genuinamente interessados em descobrir um ao outro. O encontro. Caminhamos na direção de uma utopia antiga, de uma ação fundamental ao ser humano: encontrar o outro, olhar seu rosto, vê-lo e ouvi-lo.

Nesta busca, a Trupe se aproximou dos estudos da História Oral. Nossa pesquisa encontrou então suas bases neste campo interdisciplinar que contempla as narrativas dos indivíduos tantas vezes invisibilizados. A História Oral, segundo Paul Thompson, "admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo".

O que se propõe a partir de pesquisas desenvolvidas por meio da História Oral é a valorização do sujeito da ação, registrando histórias do cotidiano e a construção de identidades. São discursos que propiciam uma compreensão mais ampla da vida social e, consequentemente, das relações de comunicação e cultura articuladas pelos sujeitos; aqui, narradores e artífices de suas histórias.

Os artistas da Zózima Trupe são sujeitos periféricos e, desse modo, é sobre o subúrbio que nosso olhar é lançado. Poucos são os olhares que buscam a emergência do sujeito e a compreensão do subúrbio como um espaço não apenas de reprodução, mas de criação.

Ao trabalhar com histórias de vida - principalmente dos que habitam as periferias - pressupomos o encontro com a narrativa organizada pelos entrevistados; uma narrativa seletiva que constitui-se de elementos fundamentais para sua formação de identidade tanto individual quanto coletiva. 

No próprio ato de lembrar, o indivíduo reorganiza, recria e reconstrói suas diferentes possibilidades de identificação reafirmando e reassegurando o seu lugar enquanto sujeito da ação.

A narrativa que a pessoa constitui sobre si mesma, o modo como se compreende e o que ela pensa sobre a realidade social onde está inserida está alinhada à ideia de leitura do mundo, apresentada pelo educador Paulo Freire. É possível - e nos interessa - traduzir este conceito desenvolvido no campo da educação para o teatro, fundamentando ainda mais nosso movimento de pesquisa.

Desde o início da trajetória da Trupe, encontramos públicos de características diversas - até mesmo paradoxais. Pessoas que utilizam cotidianamente o ônibus em suas locomoções e outras que praticamente desconheciam o transporte público coletivo. Frequentadores assíduos de teatro e aqueles que nunca tinham visto uma encenação teatral. 

Para além dos convidados e daqueles que já conheciam e acompanhavam nosso trabalho, eram transeuntes, homens e mulheres em ruas-alamedas-becos-avenidas-terminais que viam com estranhamento e admiração um espetáculo sendo feito dentro de um ônibus. A Zózima conduz uma travessia, simultaneamente concreta e simbólica pela cidade e suas paisagens, que ressignifica imaginários acerca do lugar do teatro na sociedade.

Muitos pensavam - e tantos seguem acreditando - que o teatro é um casarão antigo ou um edifício chique; um castelo kafkiano inacessível onde não seriam bem-vindos, não poderiam entrar. Quando artistas e público estão lado a lado dentro de um ônibus, outra possibilidade de entender e vivenciar a arte se abre.

Neste emaranhado de vivências surge uma questão incontornável para esse movimento de pesquisa: não há palco; não há delimitações espaciais que separam atores e passageiros. Barreiras são rompidas. O público compartilha a própria feitura do espetáculo e nisso reside a possibilidade de vivenciar a arte. Na presentificação corporal de todos ali presentes, o teatro do encontro sem fronteiras se desenha.

Essa pesquisa é uma busca pelo entendimento do público como sujeito-participante da encenação. Não se trata apenas de um espectador que assistirá passivamente ao espetáculo apresentado; o lugar é outro, também porque o público é outro. Neste movimento, nos interessa observar e refletir sobre as ações e reações daqueles que compartilham o ato teatral com os artistas da Trupe, assim como pensar as formas possíveis de interação que criamos em nossas obras.