Todos Os Dias, Nascem e Morrem Dias

[Divisor]

Todos os dias, nascem e morrem dias. Hoje, pode ser um dia que nasce criando manhã de sonhos, que cresce em ofícios e demandas esperançosas, que morre gerando no tempo da noite, amanhã de mistérios. Sim! Toda morte tem seu mistério, toda criatura que nasce tem seu propósito. O que pode hoje nascer? O que neste instante pode hoje morrer? Os passos-palavras ainda anunciam o mesmo destino. Mas, e para as criaturas do silêncio, essas que dedicam o tempo a observar dentro do mundo e os seus mistérios? Num dia, que poderia ser um dia comum ou um dia qualquer, desses dias que surge o sol, esfria o tempo e faz chover, brotou em terreno desenganado, em espaço onde não deveria ser lugar, algo ou um alguém inapropriado para o tempo de agora, assim era o que se podia pensar no momento presente, este, que sempre molda o que pensamos.

E o que ou quem nasceu? Nasceu uma senhora-menina que não sabe dizer. Essa senhora não escreve, nem lê feito os letrados, é ser que nasceu pro canto, e canta feito pássaro, e conversa com o tempo, e semeia conhecimento feito floresta antiga, é menina de sorriso largo que transborda encanto feito cachoeira feliz.

E d’onde nasceu a criatura? Nasceu em um canto desimportante, nasceu num lugar qualquer, num ônibus de lata, na máquina que desloca o povo em meio a cidade, lugar desprovido para o nascer, nasceu com flor nos olhos olhando pela janela a imensidão, num dia de semana feito para o trabalho, num peito diário em meio a poeira cinza. Era um dia nublado triste, como tantos outros dias nestes últimos tempos, dizem que foi semeada pelas mãos do agora, do momento presente, trazida no vento, gerada no mistério da terra, parida na dureza do ferro, feita na escuridão clara, é criatura do interior da cidade, raiz do asfalto. 

Ela vem do tempo que palavra reduzia a experiência, dizem que é dum lugar que era proibido dizer sobre. Tudo já morava no corpo, era nas ações que se decifrava a imensidão que não cabia em letra. Neste lugar d’onde ela vem, a palavra era gesto, passo, respiração e olhar. Um alguém delicado, uma existência dura. Ela é menina-senhora, flor-cantiga, esperança-missão, um ser contrário feita contradição, não é como o girassol que busca a luz em seu viver. O sol habita lhe dentro, seus olhos são escuros, frios e úmidos como o centro da flor. Como em toda caverna íntima, de sua boca não sai o que se espera ouvir, é som colorido, ouve se os segredos dos tons, não tem idade certa a mulher. 

Ninguém sabe se de fato ela nasceu ou se morreu no instante tempo, pois quem lhe conhece já não é mais o mesmo. Este passa habitar outro mundo, outro tempo. É difícil encontrar palavra-imagem que lhe explique com precisão. Talvez por isso ela não diz. Ela é do tempo que a palavra era saber da chuva, do silêncio, das plantas e dos animais. Era saber do dia e da noite, da terra e do vento que sempre soprava saber em seus ouvidos, em sua alma. A única certeza, estarrecedora certeza que se anuncia em todos que lhe vêm, em todos que ouvem o seu canto-cantar, é que Zózima é feita da invisível utopia, da loucura plena que os sãos temem. Era criatura nunca vista que guardava em sua jovial presença: mudança-sonho do que se foi, do que se tinha, do que se sabia até o momento existente. 

Era feita de movimento puro que impulsiona seu estar no mundo e de quem vivencia sua presença, algo que não se divide com ninguém, apenas se compartilha. Zózima nome que um dia em canto cantou, era flor rara poesia, imagem transformadora, essência desconhecida, era tempo, que não se decifra de imediato. Era tempo que só nasce quando passa, passando morre e assim fica na sensibilidade de quem lhe capta.

Lídia Zózima mestra-tempo que nos transformou. 

Foi professora de expressão corporal da Trupe na Fundação das Artes em São Caetano do Sul, artista que inspirou e semeou coragem-fé no grupo, plantou o SIM! em cada um de nós. Sempre acreditou no brotar do jovem. SIM! O ônibus urbano poderia  ser um espaço de pesquisa cênica, de encontro, de poesia na travessia de seus recém formados jovens-artistas-periféricos, que de 2003 à 2007 se deslocavam cinco horas por dia para estudarem teatro. Zózima, depois de 20 anos de luta contra um câncer, morreu no dia 7 de janeiro de 2016, pouco antes do nascer do espetáculo Os minutos que se vão com o tempo onde mesmo debilitada (em estágio avançado da doença) participou dos dois anos de investigação, para a criação e continuidade da radical pesquisa em torno do ônibus urbano como espaço cênico e no encontro da arte com passageiros-trabalhadores do transporte público.

Somos filhos da Zózima. Ser, que diariamente ao morrer, tornou-se adubo para que outros pudessem nascer.

Anderson Maurício & Zózima Trupe - cantos-lugares periféricos de São Paulo, 2018. Texto escrito para o projeto Todo canto falta algo, todo canto cabe um canto.