UM ÔNIBUS CHAMADO JACAREÚBA

[Divisor]

Por que escolher o ônibus como feitura cênica do teatro da Zózima Trupe e não um palco “convencional” ou um espaço inusitado a cada trabalho? Esta é uma questão que sempre apresentam ao nosso grupo que tão cedo decidiu viver de arte, definiu um espaço e um projeto de pesquisa: o teatro do encontro. Na verdade, estas decisões são arriscadas, pois não sabemos como será o dia de amanhã. Elas brotam como uma flor no estrume e não deixam de ser possuidoras de contradições e encantamento. Revelam beleza e crueldade.

É preciso capinar e suar neste terreno extenso, de matos altos, debaixo de sol e chuva. No frio, é preciso saber se agasalhar bem, porque não podemos parar o trabalho. Nem em tempos secos. Ainda é preciso plantar as sementes do doce mamão papaia, fruto refrescante e diurético; do saboroso e adocicado tomate cereja; do ácido limão taiti, antibiótico natural. Também é necessário plantar as sementes de roseiras de cor branca, amarela e rósea. As rosas vermelhas bordeaux. Os girassóis, porque gostamos de observá-los. Para realçar o sabor dos pratos: temperos, coentro, manjericão, pimenta, louro, alho e cebolinha.

E também vamos plantar uma Jacareúba, árvore que se adapta a terrenos onde outras espécies encontram dificuldade. Mesmo em terras pobres, pedregosas, rasas ou sujeitas a inundações ela floresce. Também é conhecida por outros nomes populares, como guanandi, guanambi, casca-d'anta, guanandi-do-brejo, cedro-do-pântano, santa-maria e pindaíba. Essa árvore será nosso relógio das estações, pois acompanharemos o seu ciclo a cada ano. A Jacareúba, claro, viverá mais do que todos nós, dando sombra a outras pessoas em tempos de calor intenso, lembrando-nos que um dia foi semeada por alguém, não interessa quem. Porém, o trabalho é árduo. O agricultor terá que cultivar logo, pois precisa sobreviver do seu próprio trabalho. Sua família aguarda ansiosa pela colheita, momento de festejar, agradecer e recomeçar o plantio.

A ideia de um teatro do encontro parte, sobretudo, dum diálogo face a face com o trabalhador, aquele que quase nunca vai ao teatro, que passa horas dentro do ônibus. Este teatro é sem fronteiras porque se alastra rapidamente depois do primeiro encontro com o público, que é arrebatado pela reinvenção poética do espaço através da arte. E se propaga mais do que um capítulo de novela na televisão, porque é novo, vivo, é recíproco, é o encontro da arte com o povo. No teatro, dentro do ônibus, acontece um fenômeno, uma relação esperada por séculos. O teatro está lá – com os passageiros de ônibus. É real.

O ônibus da Trupe parte pelas ruas da cidade. E pelas janelas é possível vislumbrar o mundo, o universo do lado de fora. Neste ônibus, o interior e o exterior se transformam paulatinamente – com magia, encantamento e estranhamento. O encontro que ocorre no ônibus se alastra, criando ramificações e outros encontros do lado de fora: com o padeiro, a menina do panfleto, o guarda preocupado, o senhor da rua, o casal de namorados, o suposto amigo de Antônio e os rapazes querendo ajudar Madalena. Todos ficam intrigados com o fato inusitado, criativo. O ônibus segue. No caminho seguem outros ônibus. E como um ímã os ônibus se encontram, ficam lado a lado, observam-se. É inexplicável a fenda que se tem nesse momento: o real e a fantasia, a rotina e o inesperado. Há um universo complexo de questões nos olhares dos motoristas, dos cobradores, dos passageiros e dos artistas. O sinal verde no farol acende, os ônibus aceleram – partem juntos como gêmeos siameses até que na quadra adiante, olho no olho, se despedem em silêncio.

O nosso ônibus, onde o teatro é encenado, segue o seu caminho em largas avenidas, em ruas de mão única – até nos estreitos becos. Todos ficam atentos a cada imagem – interna e externa. Exploram o potencial de encontros por onde o ônibus passa: bares, bancos, lojas, creches, casas, prédios e feiras. Por onde chega se apresenta. O nosso ônibus faz amizades, é simpático – tem carisma este ônibus. Depois de um tempo, chega ao seu destino, o terminal, o seu ponto final. As portas se abrem, os artistas se despedem, as pessoas descem, o motorista desliga o motor. O ônibus deixa de pulsar. Os encontros cessam.

Olhando pela janela, logo percebemos que na primeira lanchonete à vista há uma moça apontando para o ônibus, compartilhando com a garçonete algo que acabou de viver. Do outro lado, ouço um homem ligando para a esposa, contando com entusiasmo a experiência que viveu. O motorista vai ao encontro do amigo que encontrou no caminho, o cobrador conversa com os amigos sobre o espetáculo, os passageiros olham e procuram algo no ônibus já desligado. Eles perguntam: quando teremos teatro em nosso ônibus? Uma senhora chama uma das atrizes e diz que sua neta nunca tinha ido ao teatro e que queria nos dizer algo. A menina de sete anos, de olhos castanhos e voz doce, conta um segredo guardado a sete chaves: ela gosta de cantar.

Certo dia, uma atriz da Zózima Trupe estava se locomovendo num ônibus, quando de repente uma moça fez uma pergunta: "Você é a atriz que faz teatro no ônibus, não é? Já faz três anos que assisti ao espetáculo de vocês”. O nosso teatro permanece no imaginário das pessoas. Nosso teatro não é somente para os trinta e dois passageiros de ônibus que nos acompanham durante as apresentações; não há fronteiras para o encontro com dezenas, centenas e milhares de pessoas, pois está na memória de todos que encontramos dentro e fora do ônibus, e como afirmou o sociólogo Betinho: "Quem fica na memória de alguém não morre".

Por isso, não estamos nos palcos convencionais, nem em ruas ou praças específicas, nem trocamos o espaço cênico a cada projeto. Escolhemos o ônibus. É assim que desenhamos o nosso teatro, o nosso encontro, o rompimento verdadeiro das fronteiras: num ônibus. Um ônibus chamado Jacareúba.

memórias de Anderson Maurício, 2013. Texto presente no livro Teatro no ônibus: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima, de Rudinei Borges (publicado pela editora da Cooperativa Paulista de Teatro, 2013).